sábado, 26 de dezembro de 2009

BRINCADEIRAS E POESIAS

Com a palavra, a poesia ...

O jogo, tão apreciado pelas crianças, surge na poesia através da brincadeira com as palavras como uma forma de representar o jogo social e de conhecimento do mundo e de si mesmo.

O poema brinca com as palavras, seja pela repetição de fonemas seja pela surpresa no emprego de certos vocábulos. Esse jogo pode ser vivido na leitura da poesia infantil brasileira produzida na atualidade.

Nesse sentido, serão observados alguns aspectos do livro Um passarinho me contou, de José Paulo Paes (1997), como o ludismo que se constitui pela linguagem visual e verbal, pois a ilustração contribui para o sentido gerado pelo leitor. O texto, no livro, é a união da palavra e da ilustração.

Que tal trocar os versos de “achei um relógio”, que o poeta José Paulo Paes escutava na infância, por um poema escrito por ele, denominado "Pura verdade":

Eu vi um ângulo obtuso
Ficar inteligente
E a boca da noite
Palitar os dentes.

Vi um braço de mar
Coçando o sovaco
E também dois tatus
Jogando buraco

Eu vi um nó cego
Andando de bengala
E vi uma andorinha
Arrumando a mala.

Vi um pé de vento
Calçar as botinas
E o seu cavalo-motor
Sacudir as crinas.

Vi uma mosca entrando
Em boca fechada
E um beco sem saída
Que não tinha entrada.

É a pura verdade,
A mais nem um til,
E tudo aconteceu
Num primeiro de abril

O texto composto em primeira pessoa auxilia o leitor no processo de identificação com as novidades apresentadas pelo eu-poético, de modo que aquele se assume também como o ser que descobre as incoerências reveladas. Através da métrica oscilante entre cinco e seis sílabas poéticas, o poema de seis estrofes revela um tecido melódico formado por rimas consoantes externas como inteligentes/dentes, sovaco/buraco; e internas, cocando/jogando, andando/arrumando. Há ainda as rimas toantes, mais sutis, no interior dos versos que também contribuem para a melopéia: mosca/boca, ficar/palitar.

Brincando com a imaginação infantil, o poema sugere uma série de imagens, aparentemente ilógicas, as quais contêm humor e podem ser visualizadas pelo leitor, levando-o ao riso e a constatação de paradoxos existentes. Algumas das contradições exploradas pelo eu-lírico retomam aspectos da natureza: a boca da noite / palitar os dentes, andorinha / arrumar uma mala, pé de vento / calçar botinas. O ilogismo sugerido pela palavra contribui para o ludismo da poesia e pode ser considerado um recurso instigante para a imaginação infantil, assim como as brincadeiras lingüísticas próprias da criança. O jogo sonoro estende-se ao emprego inusitado dos vocábulos.

O poema “Roda” inicia por uma cantiga de roda: Ciranda cirandinha / vamos todos cirandar, anunciando o vínculo com o folclore. O eu-lírico brinca, novamente, com o leitor, agora recriando a cantiga. A métrica oscilante de 6 ou 7 sílabas da “Ciranda” é mantida no poema, mas ocorre a inserção de um personagem que entra na brincadeira assim como o leitor que está sendo convidado a brincar . Trata-se de Ciro, um menino paraplégico que só brinca de ciranda se for levado nas costas - Ciro participa da brincadeira porque é levado pelos colegas e o leitor pela atribuição de sentido dada às constituições semânticas propostas, tanto pela palavra como por aspectos da visualidade, seja a ilustração seja a cor e os rabiscos colocados na base da página:

Ciranda cirandinha
Vamos todos cirandar.

E se o Ciro não andar
nós o levamos nas costas:
aposto que o Ciro gosta,
nas tuas costas ou nas minhas,
de dançar com a perna alheia
a ciranda cirandinha.

Vamos dar a meia-volta
Volta e meia vamos dar.

Mesmo se a meia furar
e se furar o sapato
daremos por desacato
volta sem meia ou sapato,
volta e meia em pés descalço
cantando todos bem alto:

Ó ciranda cirandinha
Vamos todos cirandar
Vamos dar meia-volta
volta e meia vamos dar.

O ludismo sonoro é criado por meio do ritmo, das rimas, aliterações e também da paranomásia, que aproxima palavras com sons semelhantes mas significados distintos: costa e gosta. A obra não esquece de outro elemento da tradição popular, as adivinhas, que aqui aparecem impressas e acompanhadas de ilustrações. Surgem como um enigma, elemento do jogo, em que a síntese está presente. O leitor precisa pensar para responder a charada. E ajudar o aluno a pensar é justamente a maior atribuição da escola.

Na primeira adivinha - Não me decapite / Pensando que eu faleça / Da cauda faço cabeça - a ilustração, auxilia na resolução da charada. É mais um elemento que contribui para chegar a resposta. Outra charada é: Visto por inteiro/ o que pisa o chão / mas não sou inteira não. A estrutura da adivinha é mantida, mas são inseridas outras idéias que estão em consonância com o modo como a criança apreende a realidade, como se percebe no poema “Metamorfose”:

Me responda você
Que parece sabichão:

Se lagarta vira borboleta
Por que trem não vira avião?

A indagação do eu-lírico, assemelha-se a indagação da criança que tenta compreender o mundo por meio de processos associativos.

O poeta não esquece da poesia narrativa. "O capitão que fugiu do frio", construído por quatro estrofes de quatro versos e uma estrofe de dois, tem versos de seis a oito sílabas poéticas que rimam entre si, pelo esquema AABB ou ABBA. As rimas ora são consoantes como em frio/navio, ora toantes como entre lobo/ fogo. Além disso, do ponto de vista da sonoridade, destaca-se ainda a assonância, provocada pela repetição do som nasal, conferindo um tom musical que tanto agrada ao leitor infantil.

O poema salienta a oposição entre frio e calor, explicitada pelo logro que o capitão sofre. Ele vai para a terra do fogo em busca de calor, mas encontra apenas frio, evidenciando a incoerência do nome, fato que orienta o leitor sobre uma característica da linguagem: a arbitrariedade entre o ser e o signo que o nomeia.

Através de um jogo de associação e síntese, o poema “Anatomia” apresenta relações aparentemente ilógicas sobre partes do corpo do palhaço, mas que surpreendem positivamente o leitor pelo jogo semântico. Esse jogo tira as palavras do contexto habitual, inserindo-as em outro contexto e o deslocamento gera a brincadeira que provoca o riso. A associação é a operação empregada para definir os termos: “A careca do palhaço / é a lona do circo.” Como se definem os olhos, o nariz, a boca e o coração do palhaço? Como é o nariz do palhaço? De que cor? De que forma? As respostas das questões cabem ao leitor.

Em "Bons e maus negócios", a oposição semântica já é evidenciada no título. O poeta joga com a duplicidade de termos Peru, pois ora o relaciona a um país da América Latina, ora a uma ave doméstica: “ .... se for para o Peru / não espere que lhe respondam / quando gritar "glu, glu, glu!"”

A disposição da palavra na página, além da ilustração pode ser um elemento que contribui para a significação, como se constata no poema “Terremoto”, cujas sílabas do vocábulo terremoto estão espalhadas como se tivesse sofrido um tremor. A compreensão do texto passa pela leitura dos códigos visual e verbal.

A proposta lúdica permeia todo o livro e instiga a imaginação do leitor. A obra rebela-se com a idéia de poesia como uma linguagem enfeitada e sempre marcada com rimas e métrica fixa. Ao contrário, mostra a poesia voltada para questões da realidade infantil, através de uma linguagem que revela tanto a surpresa do mundo interno do leitor como também do meio externo. O livro atua como o companheiro que evidencia paradoxos da linguagem e da vida, atendendo a constantes inquietações da criança que vive a indagação dos porquês. O poeta assume a perspectiva da criança, ao olhar o mundo e o revelar a partir das indagações mirins.


Convite

Poesia é... brincar com as palavras

como se brinca com bola,

papagaio, pião.

Só que bola, papagaio, pião

de tanto brincar se gastam.

As palavras não:

Quanto mais se brinca com elas,

mais novas ficam.

Como a água do rio

que é água sempre nova.

Como cada dia que é sempre um novo dia.

Vamos brincar de poesia?

José Paulo Paes








Passarinho fofoqueiro

Um passarinho me contou
que a ostra é muito fechada,
que a cobra é muito enrolada,
que a arara é uma cabeça oca,
e que o leão marinho e a foca...
xô, passarinho! chega de fofoca!


(In: http://www.revista.agulha.nom.br/jpaulo1.html#passarinho)






Acidente

Atirei um pau no gato,
mas o gato
não morreu,
porque o pau pegou no rato
que eu tentei salvar do gato
e o rato

(que chato!)

foi quem morreu.

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